quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A "polêmica" sobre o art. 142 da Constituição Federal

    Por Ronaldo Rocha (filho)

Afinal, a nossa Constituição possui (ou não) fundamento para a intervenção militar que tanto vem sendo propagada em manifestações bolsonaristas? A resposta a esta pergunta é: NÃO! E vejamos o porquê.

Primeiramente, devemos entender que o fundamento constitucional de nossa sociedade é a harmonia e o comprometimento, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias; algo que, por sinal, é verificado na parte mais ignorada do Estudo do Direito Constitucional, o seu preâmbulo.

Ao adentrarmos mais na Carta Magna de 88, especificamente, no art. 34 e 36, o tema intervenção é tratado de forma excepcional e, mesmo assim, em hipóteses pontuais, sendo todas estas dependentes de requisitos, como se verifica:

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

I - manter a integridade nacional;

II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;

III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;

V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:

a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;

b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;

VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

b) direitos da pessoa humana;

c) autonomia municipal;

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

I - no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário;

II - no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral;

III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.

O que se pode perceber é que estes preceitos versam sobre a intervenção de certa Unidade da Federação, quando esta se enquadrar numa das hipóteses elencadas nos artigos anteriormente citados. 

Daí devemos pensar: se para realizar uma intervenção de uma Unidade Federativa é necessário todos esses requisitos, quanto mais de uma parte do Brasil ou de todo o nosso país. 

Nesse sentido, vejamos o que diz a Constituição sobre o Estado de Defesa e o Estado de Sítio:

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 4º Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.

§ 5º Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.

§ 6º O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.

§ 7º Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

Até aqui tratamos das hipóteses de intervenções permitidas constitucionalmente, em que o princípio da legalidade, do art. 37, apresenta-se como requisito imprescindível para que esses atos interventivos ocorram. Afinal, o Estado só pode fazer alguma coisa se houver lei, do contrário, deve ele permanecer inerte, imóvel.

O que trataremos a seguir é sobre uma "tese" absurda, proposta em manifestações bolsonaristas pelo país, completamente diversa dos princípios constitucionais.

Segundo os defensores desta "tese", incompreensivelmente sustentados pela argumentação de Ives Gandra Martins, um dos maiores expoentes do Direito Constitucional brasileiro, o art. 142 daria às Forças Armadas um poder de moderação, em nome da defesa da lei e da ordem, na hipótese de um conflito entre os Poderes Constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário).

Entendimento este que, entretanto, foi prontamente rechaçado por outros Constitucionalistas de envergadura. Vejamos:

Segundo Elival da Silva Ramos, ex-procurador-geral do Estado de São Paulo, em entrevista cedida para o UOL Eleições:

"As Forças Armadas não têm esse papel de moderação de forma nenhuma. Elas não têm o conhecimento jurídico e nem condição política para isso, não têm vocação"...

"A Constituição garante que as Forças Armadas atuem, excepcionalmente, em situações de economia interna para garantir a lei e a ordem, e só se forem requisitadas."

O exemplo utilizado por Silva Ramos foi a intervenção militar feita no Rio de Janeiro em 2018, quando foi solicitada pelo Estado e autorizada pelo ex-Presidente da República Michel Temer:

"Foi pontual e voltada à segurança pública, mas se está havendo um conflito jurídico, a Constituição atribuiu a palavra final ao STF (Supremo Tribunal Federal)." 

A interpretação de Ives Gandra, para o professor Leão Bastos, também em entrevista ao UOL Eleições, desconsidera os demais artigos da Constituição, que impõem limites para a ação das Forças Armadas, não sobrevivendo o entendimento de que fossem considerados um Poder Moderador. Segundo as palavras do professor:

"Há uma série de artigos, como o 37, que trata dos princípios da administração pública, que estabelece limites para o exercício das Forças Armadas. Garantir a lei e a ordem não significa, a meu ver, que podem atuar como se fossem um Poder Moderador. Elas são a segurança do país, externa e internamente, dentro dos limites constitucionais, pondera o constitucionalista."  

Outro jurista entrevistado pelo UOL, foi Walter Maierovitch, desembargador inativo do TJSP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo); para ele, a interpretação de Ives Gandra é uma "novidade":

"Alçar as Forças Armadas ao papel de juiz dos juízes me parece um grande equívoco".

E continua Maierovitch:

A função do Poder Moderador foi extinta no Império e "não teve lugar" na República. Se o Judiciário foi chamado, é o Judiciário quem decide os conflitos."

Fato é que ao verificarmos o art. 142, percebemos que o emprego das forças armadas, dependem da remissão a uma regulamentação, quando o seu parágrafo primeiro diz:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

A Lei Complementar em questão é a LC 97/99, que ao se referir ao preparo e emprego das Forças Armadas, também, não evidencia qualquer tipo de intervenção no sentido de derrubar o Estado de Direito vigente; a garantia da lei e da ordem não são contra os Poderes constituídos, mas sim a favor deles, como se verifica logo no primeiro artigo da referida Lei Complementar:

Art. 1o As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Aliás, diga-se de passagem, sobre o tema em tela, a única coisa que está clara na legislação brasileira, especificamente, no Código Penal, são os crimes contra as instituições democráticas, conforme a seguir descrito:

Abolição violenta do Estado Democrático de Direito

Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Golpe de Estado

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

Enfim, de acordo com tudo que fora argumentado, se o que estão alegando, com base na tosca "interpretação" do art. 142 e sua Lei Complementar, fosse possível, logo, não haveria razão de considerar como crime o Golpe a "Abolição violenta do Estado Democrático de Direito" e o "Golpe de Estado".